domingo, 31 de outubro de 2010

Amigos do coração ou do Facebook ?



Diga-se a verdade, Vale de Telhas no Facebook foi uma boa ideia. Infelizmente, a ideia não foi de alguém que tem raízes na terra mas de um filho de coração. Quando não se nasce numa aldeia mas que se tem a impressão de ser dessa terra, é certamente uma ligação forte que se estabelece.

Mas o Facebook também engana. Ali somos todos grandes amigos mas a realidade do dia a dia não é bem assim, porque cada um tem a sua vida, porque cada um tem os seus hábitos, porque cada um tem amigos diferentes, porque cada um tem outros objectivos na vida real.

Claro, no Facebook é raro falar-se mal deste ou daquele enquanto que na vida de todos os dias, como todos sabemos, é um verdadeiro desporto na nossa terra.

Então, o Facebook é bom ou mau para nós ?

Ē evidente que não lhes vou dar a resposta certa e prefiro que cada um se faça essa pergunta. O que eu sei é que o Facebook pode ser factor de desenvolvimento das mentalidades, pode ser o ponto de partida de amizades e uma fonte de informação, na condição que cada um participe nessa partilha de informações.

Já estou a ouvir alguns de vocês a perguntarem de que informações é que se trata. Coisas simples, meus amigos. A vida da aldeia ao longo do ano, momentos fortes de alegria ou de tristeza, pequenas coisas também. Falar das nossas vidas, dos nossos amigos, da nossa terra, das suas gentes, das suas tradições, das suas dificuldades.

Facebook pode ser tudo isso mas também pode ser um instrumento inútil, um passatempo para atrasados mentais.

Podemos escolher. Cada um que faça como entende...

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Vale de Telhas, aldeia sem futuro ?


Vale de Telhas é um caso de figura que deveria ser estudado na universidade.
Embora tenha obtido foral de D. Dinis em 22 de junho de 1289, Vale de Telhas não evoluiu muito tanto económicamente como nas mentalidades.
Um dos exemplos é o passado recente da aldeia e do concelho de Mirandela. Desde o 25 de abril de 1974, os partidos de esquerda nunca ganharam a eleição para a junta de freguesia que, como a câmara municipal de Mirandela, tem estado nas mãos da direita enquanto que o poder nacional passou de um partido paro o outro e vice-versa.
Em Vale de Telhas, a influência da Igreja católica foi grande durante muitos anos e fez com que os maus hábitos se instalassem nesta pequena aldeia transmontana.
Continuou-se a trabalhar a terra, os emigrantes quase só regressaram para gozar da reforma e os jovens continuam a partir. Vale de Telhas tornou-se numa aldeia triste, como outra qualquer onde não dá vontade de se instalar para viver.
Portanto, a aldeia tem um grande potencial e se houvesse um pouco de vontade política e de união da população, podia-se transformar num pequeno paraíso.
Quando a sorte bateu á porta com a chegada dos fundos comunitários deveria-se ter transformado a aldeia numa pequena vila moderna e dinâmica.
Gastou-se dinheiro mal gasto sem ter em conta o interesse de toda a aldeia.
Destruíu-se o moinho de água que estava situado mesmo na aldeia, não se renovou um outro situado no local a que chamamos a "azenha do ti Mário". Esses dois moinhos poderiam fazer parte de um roteiro turístico da região. São só dois exemplos, mas há mais.
Quem diz turismo diz economia e benefícios. Aos turistas, poderiam-se vender os produtos da terra que são de qualidade, podia-se abrir um ou dois comércios (loja colectiva para venda dos produtos, restaurante, etc) e criar vários postos de trabalho.
Fala-se agora de construír uma casa mortuária. Eu preferia que se construísse antes uma câmara frigorífica que permitisse aos agricultores de conservar os seus produtos e obter melhores preços dos compradores sem estarem sempre com medo de terem que deitar tudo para o lixo por não o poder conservar.
Falhou-se também a construção de um centro de dia para as pessoas idosas e de uma sala polivalente para os jovens da aldeia. Porque não se podem separar uns dos outros. Uma sociedade é antes de tudo um conjunto de pessoas que vivem juntas. Cada um dá ao outro o que tem ou o que sabe e todos se enriquecem com este convívio.
Na época em que o mundo inteiro está ligado pela internet, Vale de Telhas ficou atrás e ainda hoje não há um único computador com ligação internet onde cada habitante possa ter accesso a um espaço de liberdade.
Fizeram-se algumas coisa boas. Vale de Telhas foi uma das primeiras aldeias com rede de esgotos e com água canalizada em todas as casas. Porém, ainda há tanto para fazer.
Cada vez que há eleições e embora quase nimguém perceba nada de política, há sempre um campo que tenta neutralizar o outro e é de assinalar a incapacidade de fazer alguma coisa em conjunto, de levar para a frente projectos que sejam do interesse de toda a comunidade, de preparar o futuro para que a aldeia continue a existir daqui a mais mil anos.
Portanto, tudo isso é possivel. Se houver vontade para o fazer. Se houver vontade para se ir para a frente. Se houver vontade de ver outra coisa que a ponta do nariz.
Mas quando o sábio mostra a lua com o dedo, o idiota so vê o dedo !
Esse é o nosso problema. Espero que o próximo presidente da junto de freguesia assim como o futuro presidente da câmara municipal de Mirandela façam parte daqueles que vêm a lua.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Verde, preta, roxa... Transmontana !

Como todo transmontano que se respeita, sempre gostei de azeitonas. De azeitonas cortilhadas de preferência, mas também de alcaparras e do líquido verde-amarelo que sai das azeitonas, isto é do azeite.
Sim, o azeite prova-se, come-se, bebe-se e também acompanha os alimentos para realçar o gosto.
Só quem nunca comeu uma "côdea" de pão centeio com azeite, por vezes com açucar, é que não compreende o que eu estou a escrever.
O azeite é o fruto do encontro do sofrimento da oliveira e do sofrimento do homem.
Sofrimento da oliveira porque o calor é tanto no verão, a sede é enorme, qua a oliveira quase perde o verde e fica prateada. No inverno, ela sofre do frio, da neve e do gelo. Logo depois de oferecer o seus frutos ao homem, sofre o assalto deste, dos seus machados ou dos serrotes, como se a oferta não fosse sufíciente.
Mas talvez seja o modo do homem se vingar do seu próprio sofrimento, dos frios que apanha para ter o privilégio de provar o líquido da felicidade.
Porque o azeite dá saude, dá gosto aos alimentos, dá aquela cor inesquecível a umas simples batatas cozidas ou aquele aspecto guloso a uns grelos da horta. E nem sequer vos falo do papel indispensável do azeite nas alheiras.
E para aqueles que escorregarem sem querer até este blog, devo dizer que não há azeite, mas que há azeites.
O azeite tem vários graus de acidez, quanto mais baixo for, melhor é para a saúde. Mas o azeite é também semelhante ao lavrador, toma a seu carácter, por vezes bom, por vezes mau. É suave ou ácido, conforme o amor que o lavrador tem pelas suas oliveiras, pela sua terra, pela suas azeitonas.
Não é por acaso, que antigamente, o azeite tinha mais gosto. As oliveiras eram tratadas de outro modo, com mais amor e mais trabalho. E cada azeitona era apanhada pelas mulheres, por vezes com muito sacrifício. Rebuscavam-se as ervas, por vezes até as silvas, quanda a geada ainda estava bem forte.
Hoje, só já se apanha a que cai nas lonas, o resto fica para os pássaros. Mas tordos cada vez há menos e talvez um dia até já nem haja para ainda comerem a azeitona que os homens hes oferecem, agora de boa vontade.
Como podia o azeite não ser esse líquido que nos faz brilhar os olhos, como se fossemos crianças ?
Para quem não sabe, o azeite não é como o vinho, não se obtém só pelo facto de esmagar as azeitonas. A técnica é mais complicada e só a experiência é que permite fazer um bom azeite.
É também essa dificuldade técnica, que obriga a levar as azeitonas a um lagar de azeite, que faz que por vezes o lavrador é roubado pelos que fazem funcionar esses lagares.
Falei-lhes de alcaparras. As nossas, são simplemente azeitonas ainda verdes, esmagadas geralmente com uma pedra e ás quais se lhes tirou o caroço. Depois são metidas na água e.... Ah, queriam saber ? Isso agora é segredo.
Como também é segredo quais são as ervas que se metem na tanha onde se poêm a curar as azeitonas. Verdes, pretas, roxas, não tem importância. O que importa é que a água tem de ser da fonte ou de um poço, sem lixívia ou outros produtos de tratamento. E depois, juntam-se as ervas e mais umas coisas que conservam, que dão gosto e que são da nossa terra.
Esquecia-me de lhes dizer uma coisa. O azeite sempre foi considerado pelos antigos como um produto de alta qualidade. Por isso é que o azeite sempre serviu, e serve ainda hoje, para "alumiar" ao Santíssimo Sacramento.

Alheiras de Mirandela (1)

Não lhes podia falar de Vale de Telhas sem lhes falar de alheiras.
Desde que seja do concelho de Mirandela, a alheira pode ter por nome : alheira de Mirandela.
Portanto, as melhores não são as que são fabricadas na cidade mas sim aquelas que são feitas com paciência, com muito trabalho, com aquela arte dos antigos, diria quase com amor, aquelas que são feitas nas aldeias.
Sim, com amor, porque a alheira era, antes de tudo, feita para a família ou para os amigos, e para a família, dá-se sempre o que há de melhor.
As que se podem encontrar nas lojas de Mirandela são feitas á pressa, quase nem tem tempo de secar para não perderem peso e nem sempre são de boa qualidade. Para resumir, diria que são feitas á pressa para gente apressada.
Ora, a alheira é muito mais do que isso. Não pode ser considerada únicamente como um produto importante da economia do concelho.
A alheira é um facto social e cultural que tem raízes na história da região, fala-nos das gentes e das várias culturas que por aqui passaram, dos seus usos e costumes, das suas fortunas e desgraças.
Mas o que poucos transmontanos sabem, é que a história da alheira começou nos fins do século XV (1498), quando o rei D. Manuel I e depois seu filho, D. João III, para encher os cofres do reino e equilibrar as finanças, decidiu expulsar os judeus. Alguns deles, eram queimados nas praças das cidades como Lisboa, Évora e mesmo Goa.
Os mais ricos fugiram para França, Itália e Flandres (Holanda). Mas os pobres, que não tinham dinheiro nem para fugir, nem para pagar o rei, viram-se obrigados a aceitar em tornar-se em "cristãos novos". 
Lá iam eles á igreja, depois de terem sido baptizados, recitar padres-nossos e credos embora quase sempre sem convicção. 
Mas o Santo Ofício rodava nas cidades e os filhos de Israel pensaram que estariam certamente mais em segurança nas aldeias transmontanas.
Assim se instalaram na região guardando por vezes um pouco da tradição religiosa que está em lenta extinção.
Mas os esbirros da inquisição vieram até as aldeias de Trás-os-Montes para verificarem quem não trabalhava ao sábado, quem não comia peixe sem escama nem carne de porco.
Foi então, num sobressalto de sobrevivência, que começaram a aparecer nas lareiras os doirados enchidos, a brilhar com tanta gordura, Chouriços tão luzidios, com tanta untuosidade, só podia ser casa de bom cristão.
E muitas vezes, os próprios membros da inquisição, sentavam-se à mesa com os judeus, comiam e bebiam á escacha e iam embora fartos mas enganados.
Enganados pela súbtil sagacidade dos perseguidos cristãos novos, que antes de meter
na tripa seca (de vaca) o sangue e a carne de porco, que a lei mosaica vedava, antes usavam a gorda galinha criada em casa, coelho do mato ou perdiz, tudo desfeito e amassado com pão de centeio, bastante azeite doirado e como condimento o sabor agressivo do alho silvestre.
Mas as mentalidades e os usos evoluem e as pessoas adaptam-se.
Hoje, as alheiras já não são feitas assim. Caça, já pouca há e eu não me lembro de ver meter perdizes ou coelhos nas alheiras. A carne predominante é o porco e a galinha.
Ainda há alguns anos, o porco era criado em casa mas nestes últimos anos os porcos já são comprados a negociantes e não têm o mesmo gosto.
Porém, a alheira continua a ser um manjar  tipicamente regional embora o seu paladar possa diferir de casa para casa.
A alheira é o resultado do cruzamento de culturas e mesmo de religiões. Um belo exemplo para nós.
No próximo post, vou-lhes contar como se fazem as alheiras.

Alheiras de Mirandela (2)

Antes de mais, que as coisas sejam bem claras. Para fazer boas alheiras, a carne deve ser de qualidade.
O porco, criado em casa tem a vantagem que não só não acarreta custos complementares para o produtor mas também permite de ter um gosto diferente já que o animal come quase de tudo. Batatas, milho e outros cereais, castanha, legumes e restos das refeições da família, dão um sabor único á carne das raças criadas em Trás-os-Montes.
Convém também que as galinhas, os patos e os perús sejam também de produção caseira.
Se a matéria prima não for de qualidade, as alheiras também não o serão.
O fabrico das alheiras começa sempre no dia anterior. Matam-se as galinhas, os perús e os patos, corta-se o pão ás fatias e põe-se numa grande caldeira de cobre. Hoje também já se utilizam caldeiras em alumínio.
No dia seguinte, logo de manhã cedo, acende-se a fogueira e põem-se os potes de ferro ao lume. Começa então uma longa cozedura das carnes que dura várias horas. O objectivo é que não só as carnes cozam mas que também a água tome todo o sabor da carne para depois difundir o sabor intenso no pão. A mistura do gosto das aves e da carne de porco (sobretudo dos ossos da suã) é uma grande parte do segredo das boas alheiras.
Quando cozidas, desfiam-se as carnes, o que leva bastante tempo.
Depois, deita-se a calda (é o nome que se dá á água que serviu para cozer as carnes) por cima do pão, junta-se lhe o alho picado, as carnes, deita-se muito azeite "a cantar" (isto é bem quente) e o colorau para dar gosto e cor.
Antes de tudo isso, põem-se de lado as sopas (o pão só com o molho da calda)
ás quais se juntam pedaços de carne para que a família possa comer mas também para dar aos amigos. No dia das alheiras, levam-se as sopas aos familiares e amigos como é tradição. São então travessas de sopas que vão de uma ponta á outra da aldeia.
A matança do porco e os dias que seguem são momentos de festa e de fartura e têm as suas regras e usos.
Depois de misturado tudo, com uma grande colher de pau, desfazem-se as sopas até ficar numa massa untuosa.
Começa então a fase de meter essa massa nas tripas de vaca. Com uma fulineira, um ustensílio parecido com un funil mas muito mais curto, depois de a entroduzir na tripa, empurra-se a massa com uma colher e faz-se avançar a massa espremondo a tripa até que chegue á outra ponta e isso até encher a tripa por completo.
Entrega-se então a outra pessoa que vai atar com un fio de algodão e depois cortar a tripa em pedaços de cerca de vinte centímetros. Aí está a alheira !
Ao fim do dia, já bem tarde, põem-se então a secar, em varas postas por cima da lareira, as largas duzias de alheiras que foram feitas durante o dia.
O fabrico das alheiras é trabalho de mulher. E preciso muita paciência e muita experiência para fazer as alheiras. A trabalho é muito e quando se prova uma boa alheira, o sabor é muitas vezes proporcional ao trabalho que ela deu para fazer. E como lhes disse no meu post anterior, ao amor com que foi feita.
O resto, é o trabalho do calor e do fumo do fogo que arde na lareira durante vários dias. E para isso, até a lenha é escolhida. Qualidade até ao fim.
Bom proveito !

Recordações

Rossa, cacholo, couce, ruma-barruma, buraquinha, quem é que ainda se lembra desses nomes ?
Presentes no dia a dia do nosso povo, foram esquecidos lentamente, com a chegada da televisão e das discotecas. Portanto, com mais alguns, fizeram parte das tradições de Vale de Telhas, tradições que esquecemos como se tivéssemos vergonha delas.
Já adivinharam, estou-lhes a falar dos jogos tradicionais.
Com os jogos de cartas e o futebol, eram o passatempo dos jovens da aldeia. Alguns são jogos um pouco violentos como o couce, outros necessitavam um pouco de inteligência e de jeito.
Hoje, tudo isso parece a cem mil léguas do que conhecemos e os mais novos nem imaginam como se passavam certas coisas. Quando se lhes fala disso, por vezes nem acreditam.
Por exemplo, para jogar futebol, nem só não havia campo como também não havia bola. Verdade !
Então, a bola era feita com uma meia, cheia de farrapos. A vantagem, era que quando a bola saía do "campo", nunca ía muito longe porque quase não rolava.
Os jogos, como o cacholo, eram muitas vezes jogos de dinheiro, sempre pequenas quantias porque nessa altura o dinheiro era pouco.
Desses jogos, o fite é certamente o único sobrevivente, que passou de geração em geração, mas também ele parece ter os dias contados.
Quando se perdem as tradições, é sempre um pouco da nossa história que desaparece, um pouco da nossa memória colectiva que vai para os abismos do tempo.
É estranho que nunca ninguém se tenha oposto a essa perda de memória, que nunca ninguém tenha pensado organizar um torneio ou um festival de jogos tradicionais.
Alguns, devem estranhar que não lhes tenha falado de corridas de burros. Na verdade, os burros serviam para os trabalhos do campo e não havia corridas de burros. As corridas de burros só começaram a fazer-se muito mais tarde, para animar as festas de verão.
Só lhes dei aqui alguns nomes de jogos. Conto convosco para fazer uma pequena pesquisa e completar a lista com outros jogos, explicando como se jogava.
Agora, é você que joga...

Outros tempos

Aos domingos à tarde, ali para o lado da rua de cima, o realejo começava a tocar logo depois do jantar. O jantar era a refeição do meio dia, a da noite, era a ceia.
Depois do jantar, então, rapazes e raparigas vinham aos grupos para o baile que era a única distração que havia na aldeia.
Não havia electricidade e por consequente também não havia conjuntos, altifalantes ou televisão. A rádio era pois a única ligação ao mundo moderno e as familias juntavam-se em volta do pequeno aparelho para ouvir os "cantores na emissora".
Nessa altura, o serão fazia-se fora, para desfolhar o milho ou devagar as vagens e no inverno estava-se à lareira à luz da candeia. O combustível era o petróleo, mais barato e mais prático que o azeite que tanto trabalho dava, antes de ser aquele líquido precioso e dourado. O azeite também se poupava porque era um alimento e o seu uso para alumiar era reservado sobretudo para alumiar à Sagrada Familia e ao Santíssimo Sacramento.
Mas tenho a impressão que estão a pensar que lhes estou a falar do século XVIII ou XIX, não é ?
Estou-lhes a falar do século XX, da segunda metade. Parece tão longe e tão perto ao mesmo tempo.
Para aqueles que conheceram essa época, tenho a certeza que as recordações estão de novo a fazer-lhes viver momentos que já quase tinham esquecidos num cantinho do cérebro.
Este blog é terrivel, faz-nos voltar ao passado, como uma viagem inconsciente, como se não tivessemos mais força para resistir.
Naqueles bailaricos de que lhes falei no início, ao som do realejo ou da concertina, até parecia que ninguém andava cansado do duro trabalho do campo. Havia amizade, qualidade característica dos pobres, havia animação, havia respeito, eram outros tempos.
As raparigas deviam ir cedo para casa, sempre sob a vigilância das mães.
Quando chegou a televisão, só havia duas ou três, na taberna do ti Zé Cadavez ou do ti Corecho e não sei bem se havia em alguma outra casa logo no início.
As tabernas eram os centros de convívio da aldeia. Porém, só os homens e as crianças é que lá iam, porque não era bonito as mulheres irem para as tabernas.
De vez em quando, as mulheres lá ultrapassavam a linha amarela para ir ver na televisão os ranchos a dançar folclóre e por vezes para ver a tourada, espectáculo que não é tradicional da região.
Ainda me lembro da minha avó Carlota, que gostava muito de ver os ranchos. Era a sua única distração, porque nos outros dias deitava-se cedo. Lá ia ela então para ao pé da tia Delmina Corecha, de quem era bastante amiga.
Depois os bailes começaram a mudar e só já se dançava ao som do altifalante. Dedicavam-se discos para os amigos ou as namoradas, por vezes para a família que tinha emigrado, mas não vinha à ideia que os familiares nunca ouviam o disco que lhes era dedicado.
Já me esquecia de lhes falar do telefone.
"Tá lá Vale de Salgueiro ? Tá Vale de Salgueiro ?"
Por vezes era : "Tá Mirandela ? Mirandela ?"
E durante longos minutos, nem Vale de Salgueiro nem Mirandela.
E a tia Zulmira fartava-se de dar à manivela para fazer tocar o telefone em Vale de Salgueiro ou em Mirandela. Sem sucesso.
Hoje isso parece impossível tão facil que é de chamar de qualquer télémovel. Outros tempos...
Também não havia água canalizada e ainda menos máquinas de lavar roupa.
Então, a água ia-se buscar à fonte ou à bica (quando corria). A roupa lavava-se no ribeiro, junto à fonte do bairro. Quase se podia dizer que ali era o lugar com mais vida na aldeia.
Havia sempre alguém a lavar e a roupa a corar ao sol ou a secar era um espectáculo que nos parecia não ter importância nenhuma pelo facto de fazer parte do nosso dia a dia, mas hoje parece-me que as imagens nunca foram apagadas da memória. É porque era bonito e devia ter a sua importância. Senão, certamente que não me lembraria disso.
São duas da manhã, então vamos ficar por aqui.
Mais tarde, falaremos de outras coisas que também já mudaram com o tempo ou que até já não existem.
Outros tempos, outros usos, outros métodos.
E se ainda se lembra destas coisas, de que talvez até tenha saudades, não hesite em deixar o seu comentário.
Até breve...

Figuras da terra... O Albino maluco !

Todos temos recordações da infância que nos seguem toda a nossa vida.
 As minhas são por vezes momentos de felicidade quando andava em liberdade pelos campos, descobrindo, sem saber, as maravilhas da natureza. Aliás, via mas nem sempre compreendia.
 São também os dias em que se iam lavar os cobertores no rio do ti Mario. Sim do ti Mario. Era assim que se falava das pessoas mais idosas. O ti "coiso" ou a tia "coisa". Do ti Mario, falarei-hes mais tarde.
 Mas as minhas recordações fazem também parte as pessoas que penso marcaram a minha vida de criança.  
 Uma delas, foi o Albino.
 Quem não conhecia o Albino ? Ele era certamente um dos homens mais conhecidos da região. Dizia-se que era maluco.
 Morava quase em frente da minha casa logo do outro lado do ribeiro.
 No inverno, quanda a geada era muito forte et que a água do ribeiro gelava, logo de madrugada, o Albino partia o gelo para se lavar. Tronco nu, se ele não tinha frio nenhum, tinhamos nós por conta dele. Só a olhar para ele.
 Que coragem tinha aquele homem para se lavar com aquele frio.
 O Albino era também o alvo das brincadeiras das mulheres sobretudo quando iam cozer o pão no forno de tia Carvalheiras. A tia Carvalheiras era a mãe dele.
 Acho que era viúva, nunca soube exactamente. A forno era o seu ganha pão. Cada pessoa que lá cozia o seu pão, que geralmente era centeio, devia pagar o aluguer do forno com pão.
Nessa altura o dinheiro era pouco e a vida estava organizada segundo métodos que permitiam a subsistência de toda a comunidade.
 Dizia o povo que a tia Carvalheiras era bruxa. Que se transformava en "parreca" (pata) e que se podia ver de noite no ribeiro.
 Os medos do povo eram tão grandes quando se desconhecia o ser intimo de cada um que tudo era pretexto para que a imaginação de alguns viesse a ser a verdade dos outros. Na realidade, a tia Carvalheiras era uma pobre mulher que tentava de sobreviver, ela e os seus filhos, nessa época em que a miséria era grande.
 Como  muitas vezes, quando se é pobre, as infelicidades acumulam-se, como se as desgraças se atraíssem e a tia Carvalheiras, assim como o Albino, eram vítimas desse estado de ser pobre.
 O Albino gostava de um copinho e de um "cidarrinho". Quando um forasteiro vinha até Vale de Telhas, o Albino ia logo ter com ele para lhe pedir um "cidarrinho". Quando obtinha satisfação, aproveitava e pedia logo o maço dos "cidarros". Tinha razão, porque quem não pede nada, nada lhe dão.
 Mas o Albino era também o homem que ajudava toda a gente nos trabalhos do campo. Trabalhava de graça, só pela malga de caldo.
 Era também ele que levava os burros ao ferrador que tinha a sua oficina numa aldeia vizinha.
 Era bom rapaz e sempre respeitou quem o respeitava.
 Nos dias de festa, era uma das figuras do baile, ele e a Cidade, uma rapariga solteira um pouco desorientada também.
 O Albino era engraçado e o seu pequeno defeito de pronúncia fazia que os seus "taralhos" e outras maluquices eram repetidas em muitas partes do mundo.
 Quando faleceu, portanto numa época de grandes trabalhos agrícolas, a gente era muita, vinda das aldeias em volta onde ele tinha muitos amigos.
 Sabes, Albino, diziam "te eras maluto" mas na minha ideia, "mais maluto era tem to chamava" !

Repousa em paz !

Conversa à mesa do café

Já há bastante que não escrevia nada neste blog mais por falta de tempo que por falta de vontade.
Depois de passar uma semana no centro do mundo, isto é em Vale de Telhas, disse-me que devia falar-vos das conversas que tive à mesa do café. Dos cafés, deveria eu dizer, porque foram várias e em vários estabelecimentos.
Porém, falaram-me quase sempre deste blog, de Vale de Telhas e das próximas eleições.
Das legislativas, que são importantes, nem uma palavra. Das eleições para a junta de freguesia, quase todos os dias.
O que se fez em quatro anos de mandato ? Quase nada ou tão pouca coisa.
Arranjou-se o ribeiro junto à fonte do bairro, deu-se um jeito a alguns caminhos velhos e sobretudo, agora que as eleições estão quase à porta, fazem-se os trabalhos da igreja.
Ninguém é parvo para não compreender que se não houvesse eleições não teria havido obras. Já que as que são feitas, em vez de serem pagas pela câmara municipal de Mirandela são financiadas em maior parte pelo povo de Vale de Telhas.
Noutras freguesias do concelho, as obras seriam pagas pela câmara talvez a 90 %. Em Vale de Telhas, dá-se a desculpa que agora não há tanto dinheiro como antes e só vem para cá as migalhas do fartote dos outros.
Para o ano de 2009, o orçamento da câmara municipal de Mirandela é de 42 739 900 €. Quanto veio para Vale de Telhas ?
Umas migalhas, dizia eu. Por exemplo, perto de nós, para o saneamento em Vale de Gouvinhas, a câmara deu 170 000 € e 80 000 € para o sistema de abastecimento de águas, igualmente para Vale de Gouvinhas, o que faz um total de 250 000 €. E para Vale de Telhas ? 
As migalhas, meus amigos ! As migalhas !
Então, para as próximas eleições, fala-se do que se pode fazer nesta terra. Tanta coisa na realidade. Mas a alguns, faltam-lhes as ideias. A outros a coragem e a vontade.
Portanto, na nossa terra há tanta coisa por fazer.
Á mesa do café, gostei de falar com algumas pessoas que têm boas ideias e que poderão beneficiar para todos os habitantes de Vale de Telhas.
Nos jovens, senti essa força que abandonou os mais velhos há tantos anos. Essa vontade de mudar o mundo e de participar na construção do futuro.
É tempo de avançar. É tempo de mudar. É tempo de construir o futuro da nossa aldeia.
Sem mudança não há progresso. Sem mudança não há hipótese de saber se com outros será melhor ou pior.
Devemos fazer confiança nos jovens porque são eles o futuro de Vale de Telhas. Se continuarmos assim, um dia vão todos partir à procura de uma vida melhor em outras partes do mundo.
Sem eles, Vale de Telhas será uma aldeia deserta.
Temos o dever de lhes deixar uma terra onde eles possam viver, ser felizes, avançar na vida.
No dia das eleições, pense bem o que vai fazer. Trata-se do futuro de Vale de Telhas e não de dizer se estamos contentes porque se fizeram obras na igreja. Nesse aspecto, estamos todos contentes. Mas isso não chega. Se não temos a coragem de mudar, talvez um dia só tenhamos direito ás obras no cemitério.
Nas conversas à mesa do café, senti o medo dos jovens em frente de uma vida que será certamente difícil para eles. Tive também o sentimento que estão à espera que os pais ouçam o que eles têm para dizer.
Se eu fosse candidato, faria uma reunião onde todos poderiam dar a sua opinião, onde cada cidadão de Vale de Telhas poderia dizer o que quer para a nossa aldeia.
Chama-se a isso a democracia participativa. Cada um de nós deve poder dizer o que lhe vai na alma, o que espera das autoridades, como quer que sejam gastos os seus impostos. Deve poder escolher o seu futuro ou o dos seus filhos, sem que sejam os outros a dizer-lhes o que é bom para eles.
O 25 de Abril já foi há 35 anos. Já é tempo de sermos adultos responsáveis, capazes de votar sem que nos digam por quem devemos votar.
É altura de mostrar que somos cidadãos independentes, capazes de escolher livremente o nosso destino.
É tempo de mudar ! É tempo de ir em frente !
Viva Vale de Telhas !

Ai que saudades...

O dia 2 de novembro é o dia dos fieis defuntos, como todos sabemos.
A tradiçao é, nesse dia, de ir ao cemitério para rezar pela alma daqueles que, apesar da morte, estão próximos de nós.
Falo-vos de morte mas a morte não existe. Nunca morrem as pessoas que ama-mos, que ficam para sempre no nosso coração.
A morte é só um estado físico, como qualquer outro momento da vida. Os mortos estão junto de nós, os seus espíritos acompanham-nos em toda a parte e a visita que fazemos ao cemitério no dia 2 de novembro é apenas para lhes lembrar que os corpos estão ali, para sempre.
Ir ao cemitério, levar flores, lavar campas e mesmo chorar até não ter mais lagrimas, verdadeiras ou falsas, não tem importância nehuma para os mortos.
O que é necessário é estimar as pessoas enquanto estão vivas, porque depois o sal das lágrimas até seca as flores mesmo no inverno.
No meu caso, não preciso do mês de novembro para me lembrar dos meus mortos. Tenho saudades deles e lembro-me sempre deles com carinho.
Vem-me muitas vezes à memória a minha avó Carlota, a minha avó Florinda e a minha avó Miquelina. Sim, tive sorte de ter três avós. Amaram-me as três e eu também as amei.
Por vezes sofro de não ter visto o que se passou no fim da vida de uma delas, e revolto-me contra mim mesmo por não ter posto fim ao seu sofrimento.
Também me lembro dos meus avôs, o Albino e o Meireles, assim como do que não conheci, mas que inventei logo desde pequeno, o meu avô Joaquim.
E também me lembro dos meus amigos, ou dos amigos da minha família. O ti João Borges e a tia Beatriz, por quem tinha muito carinho embora não fossemos família directa. O ti Jaime também, por casa de quem andava muito quando garoto e que foi embora ainda tão novo.
Da Dona Aurora e do Sr Pinto, os meus vizinhos de que lhes falarei um dia. Da tia Imperatriz, do ti Adriano, da tia Belmira, do ti Arnaldo, da tia Corecha, do ti Zé Cadavez e da tia Zulmira, da Dona Olivinha, do ti Zé Carvalho, do ti Francisco Cadavez, da tia Aurora Borralha por quem tinha muita amizade. Também da tia Mercês e do ti Adolfo, do ti Mário da Bouça, do ti Malagueto, da Sra Hermínia, do ti João Mota, da tia Adélia Cega, da tia Amélia Garimpa, do Charralha e da mulher, do ti Chico Patatas e claro do Albino ou dos Chachos.
Lembro-me muitas vezes do Lelo, porque a sua partida revoltou-me, porque nos privou de um bom amigo. Também nunca me esqueço da tia Lita e do seu filho, o Carlos, duas jóias de pessoas, que tinham sempre a casa aberta para os amigos da terra.
Embora não tivesse tanta confiança com eles e certamente menos amizade, lembro-me também de muitos outros de que será difícil escrever aqui os nomes todos. O Norberto, a tia Marquinhas, o ti Serrador, o Chaniscas, o ti Trinta e a tia Ana, da tia Carvalheiras e de tantos outros.
Lembro-me de quase todos e por vezes surpreendo-me a comparar os filhos ou os netos com essa gente simples, de bom coração, trabalhadora. Os tempos mudaram muito e por vezes tenho saudades da solidariedade dessa época, da amizade que existia, da mentalidade simples, consequência do nosso estado de pobreza e isolamento da aldeia.
Costumo dizer que os tempos de agora são melhores e é verdade. Porém, é pena que não tenhamos guardado algumas das boas coisas que havia nessa altura.
Com o tempo, as caras vão desaparecendo das minhas recordações, como se o sol as fizesse ficar amarelas, como fotografias de outros tempos.
Espero que um dia, muito brevemente, alguém se deia ao trabalho de tirar uma ou duas fotografias a cada pessoa de Vale de Telhas, para que se guarde uma recordação dos corpos, quando só já estiverem presentes os espíritos. Uma fotografia do rosto, outra do corpo, que um dia, daqui a cinquenta ou a duzentos anos, poderão fazer parte da história da nossa aldeia.
Porque lhes falei aqui dos mortos ?
Porque fizeram e fazem parte da nossa vida, porque são parte de nós. Porque o futuro tem que ter raízes, como uma árvore. Ninguém pode construir a sua vida se não sabe de onde vem. Somos diferentes mas temos raízes comuns.
E por vezes esquecemo-nos que somos uma aldeia, somos um povo, somos uma grande família.
Somos Vale de Telhas !


Naquele tempo

Nos anos sessenta, devia haver em Vale de Telhas um pouco mais de mil habitantes.
 Não tenho bem a certeza mas parece-me que não havia nenhum automóvel nem nenhum tractor agrícola. Havia só uma carrinha de caixa aberta, a do senhor Armando, que ia vender bebidas nas festas das aldeias das redondezas.
 Os trabalhos do campo eram feitos com a ajuda de burros ou de machos. Durante a noite, os animais dormiam no rés do chão das casas, nas lojas como lhes chamamos. Não sei se isso tinha alguma consequência sobre a nossa saúde mais era uma prática generalizada.
 Os animais trabalhavam duro mas os homens também. Levantavam-se ao cantar do galo, e já estavam a trabalhar quando o sol nascia. Nessa altura, os galos ainda cantavam a horas correctas. Hoje em dia, certamente por causa da iluminação das ruas durante a noite, os galos já não cantam quando pertence e o lavrador não lhes pode fazer confiança para o despertar.
 Mudaram os tempos e até os galos perdem os padrões da vida da aldeia. Agora são os sinos da igreja que lembram que são horas de se levantar. Se é que alguns ainda precisem disso. As pessoas habituadas a levantar-se cedo há anos, não conseguem ficar na cama até tarde embora os jovens se lamentem destes hábitos de outros tempos. Raios de velhos que não deixam dormir ninguém quando se vem tarde (ou cedo) da discoteca !
 No inverno, deitava-se palha nas ruas, não só para sumir a lama que era muita e se poder circular mas também para fazer estrumo para fertilizar as terras agrícolas. É verdade que os burros não esperavam de chegar a casa para fazer as suas necessidades e até parecia que os excrementos dos burros dos outros eram melhores.
 No verão, tudo mudava. Vivia-se na rua até tarde e não era raro de ver a família e os amigos a desfolhar o milho ou a "devagar" o feijão que se tinha apanhado durante o dia.
 Esses momentos marcaram a minha infância e ainda hoje sinto nostalgia dessa época. Não só porque eram momentos alegres onde se cantava, se contavam histórias ou se dizia mal dos outros, sobretudo porque eram momentos de solidariedade, de convívio, de vida em sociedade, de conhecimento dos outros e de partilha.
 Hoje, quase tudo isso desapareceu. Cada um descobriu que as novas asas que tinha lhe permitiam de voar só, embora nos momentos difíceis da vida se recorde que só não se consegue fazer nada. Já dizia a canção : "tu sozinho não és nada, juntos temos o mundo na mão".
 Mas vamos ter a ocasião de falar disso tudo mais tarde.